segunda-feira, 31 de agosto de 2009

COLLADO PELA PENA DE OLIVEIRA GUERRA







COLLADO, PINTOR E CERAMISTA





por OLIVEIRA GUERRA*


Não é frequente que numa pequena cidade se crie um ambiente artístico, um nome e quase uma «escola», como aconteceu em Ferrol com a vivência de pintores diversos, entre os quais, com outros, se destacaram Corral, Piñeiro e Sotomayor, a ponto de se falar da «Escola Ferrolana», e, por isso, quando um dos artistas da nova geração, Gonzalez Collado, montou em Setembro ou Outubro de 1959 a sua exposição de cerâmica na Sala de la Cultura na Corunha, eu tive ganas de ir por aí abaixo para ver amigos Corunheses, Collado e os seus trabalhos e os demais expositores.
Tendo-me sido impossível essa deslocação, não hesitei, porém, quando Collado desceu quase até às nossas portas e montou a tenda em Vigo, na Sala Velasquez, em 2 de Abril deste ano, para mostrar aos vigueses os seus quadros, e no dia 4 estava eu à porta da Exposição, num cair de tarde ameno, sinceramente desejoso de ver a pintura desse rapaz simpático, artista jovial e inteligente e já envolvido duma boa fama. E gostei, gostei sinceramente.
Não tendo tomado notas, o que hoje muito lamento, eu não posso à distância de alguns meses e conduzido apenas pela memória visual e pela lembrança da minha sensibilidade, referir-me aos trabalhos expostos e dar as impressões recebidas de cada trabalho, mas posso dar conta das impressões essenciais que a pintura de Collado produziu no meu espírito e que no meu espírito se mantiveram, a começar pelo desenho, essa base ou esse alicerce de toda a pintura, que sem ele não tem sólida construção possível.
Collado, com efeito, é um desenhador magnífico, fácil, rapidíssimo, sóbrio e gracioso, dotado duma maestria e dum sortilégio que prendem à ponta do seu lápis os nossos olhos e os deixam como que parados, na expectativa com que se espera ver sair o passarinho mágico da manga do prestidigitador. Se aprouver ao espírito de Collado ou ao seu capricho ceder às instâncias daqueles que esperam vê-lo transitar, dar um passo em frente e para correntes mais avançadas, para o abstracto, nunca dele se poderá dizer que ele se fez abstracto por comodismo e pela facilidade que levam para esse género tantos e tantos que não sabendo pintar um pêra se puseram dum dia para o outro a pintar. Collado terá sempre, por detrás das aventuras pictóricas em que se meta... evolutivamente (aí! como se enche a boca com este advérbio...) tudo aquilo que a Escola oferece de sólido e francamente construtivo aos que têm algum talento para desenvolver e que é o pão e o vinho, o sustento da pintura - o Desenho. Collado não irá para o abstracto com as mãos vazias...
Sobre essa linha magnífica, delineadora, ondulosa ou angulosa, surge bem construída toda a pintura de Collado, a sua pintura figurativa, dum figurativo dos nossos dias. Surgem a sua paisagem («Paisage», «Marina», «Puerto», «Paisage al amañecer», «Paisage con pinos», «Carretera con pinos») os seus aspectos urbanos de galeguíssimo tipicismo («Vieja Calle del barrio», «Puerto de la Coruña») os seus tipos populares («Mariñeros», «Vendedoras») os seus retratos («Retrato de mi esposa», «La Niña de las tranzas») e os seus trabalhos de Paris...
Essas pinturas de Paris («Place du Tertre», «Rue de Narvins», «Notre Dame») não foram talvez as que me impressionaram mais, como é natural. Paris é a cidade mais pintada do mundo, os quadros dos impressionistas do ar livre desde Manet andam nos olhos de toda a gente, os pintores de todas as partes vão a Paris e pintam Paris, nós passamos Montmartre e vemos Paris em montes de pinturas e a minha sensibilidade já afeita à atmosfera de Paris, dada por tantos pintores e em tantas, tantas telas (a começar pelo estrangeiro arreigadamente parisiense que é Carlos Carneiro) a minha sensibilidade, repito, vai sendo um tanto exigente, à força de ter sido mimada com a visão de magníficos aspectos da cidade-luz, embebidos na sua atmosfera autêntica. Mas Collado, nos trabalhos feitos na Galiza, com a sua paisagem húmida, repassada de poesia estática, dormente, contemplativa; com as suas pinturas de pequenas praças e ruelas típicas, saborosamente típicas; com as suas figuras do povo, rudes, galeguíssimas, autênticas, Collado, ia dizendo, deixou-me encantado.
A Galiza está ali pintada, por um galego cem por cento galelo, cem por cento enamorado da sua terra, cem por cento artista, vista através da sua sensibilidade receptiva acima de tudo lírica - e se Collado, não canta como poeta a sua Galiza, as suas casas típicas, os seus barcos mergulhados nas calmas toalhas de água das rias, as suas gentes simples, calmas e cândidas, de olhar parado e distante, Collado pinta-as com todo o lirismo da sua alma ferrolana, com toda a poesia de que é capaz uma alma de galego artista e amoroso da sua terra...
Passada meia hora depois de visitar a exposição, o Collado, à mesa de um café, deslumbra-me o olhar com a presteza quase alucinante do seu dibujo donairoso, ondulante, e com o retrato que num quarto de hora me fez, em rápidos relances dos seus olhos sérios e argutos, enquanto eu falava com o poeta Celso Emílio Ferreiro. No dia seguinte o artista vinha comigo para o Porto, alegre como um pardal, atento e observador de tudo, para estudar a possibilidade de trazer cá os seus quadros e com o natural anseio de ver as nossas coisas. Encarregado pelo Ayuntamento do Ferrol de arranjar e conservar os seus jardins, prendiam-se-lhe os olhos aos nossos canteiros e observou, registou, anotou. Dadivoso, espalhou desenhos por todas as mãos, deixou mais cobertas as paredes da minha casa.
Frente ao monumento de Rosalía, fez o ligeiro apontamento que acompanha estas palavras. Em contacto com mestre Barata Feyo, no seu atelier, deixou-se prender de simpatia e admiração pelo nosso grande escultor. E mais tarde, na estação do C. de Ferrol, abriu-me os braços amigos, falador e comovido, com pena de ir e com o desejo de voltar - como voltará em breve para mostrar no Porto as águas das suas rias, as suas casas galegas, as gentes da sua terra...



* artigo publicado na revista CÉLTICA, nos primórdios da década de sessenta

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